Cerca de 6.000 pessoas detidas ainda sem condenação definitiva conseguiram votar nas eleições municipais de 2024 — um direito que a Constituição garante, mas que, na prática, poucos exercem. O primeiro turno, realizado em 06 de outubro de 2024 em 5.569 municípios brasileiros, foi marcado por um paradoxo: enquanto a Justiça Eleitoral facilitava o acesso ao voto para quem ainda não foi julgado, centenas de presos condenados foram impedidos de participar — e, ao mesmo tempo, a polícia prendeu 576 pessoas por crimes eleitorais, incluindo candidatos e eleitores. A situação revela uma realidade complexa: o Brasil tem mais de 850 mil pessoas presas, mas apenas uma pequena fração delas exerce seu direito político. E isso não é por falta de lei — é por falta de logística, informação e efetividade.
Segundo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), a diferença entre quem pode e quem não pode votar é simples, mas crucial: quem está preso por ordem judicial ainda em fase de investigação ou julgamento — ou seja, preso provisório — mantém todos os direitos políticos. Já quem recebeu sentença transitada em julgado, sem mais recursos possíveis, perde o direito de votar e ser votado. Isso não é uma novidade. Desde 2010, o TSE regulamentou a instalação de urnas em presídios, uma medida inovadora para garantir o princípio constitucional da universalidade do voto. Mas, na prática, poucos presídios têm estrutura para isso. Apenas 6 mil presos provisórios votaram. São menos de 3% do total de 209 mil presos provisórios no país, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2023.
Por que tanta gente não votou? A resposta é simples: muitos nem sabem que podem. Outros estão em presídios sem urnas, em cidades sem logística para transporte de mesários ou em regimes fechados onde o acesso é burocraticamente impossível. A Justiça Eleitoral não obriga os presídios a instalarem seções eleitorais — apenas permite. E isso faz toda a diferença.
Enquanto alguns presos exerciam seu direito, outros eram presos por violá-lo. Entre 17 de agosto e 6 de outubro de 2024, o Ministério da Justiça e Segurança Pública registrou 4.556 crimes eleitorais em todo o país. No próprio dia da votação — 6 de outubro — foram registrados 3.089 delitos. A maioria absoluta? Boca de urna: 1.170 casos apenas nesse dia. Em segundo lugar, a compra de votos: 498 ocorrências. O dinheiro envolvido? R$ 638.654 em espécie, além de 53 veículos usados para transportar eleitores ilegalmente. Ao longo de todo o período eleitoral, foram apreendidos R$ 22,7 milhões em dinheiro e bens.
Os dados mais preocupantes vieram de operações coordenadas pela Polícia Federal e Força Nacional. Em Nilópolis, na Baixada Fluminense, uma operação prendeu um grupo que comprava votos com R$ 50 por voto. Em Roraima e Rio de Janeiro, os números de prisões foram os mais altos do país. Belo Horizonte liderou em ocorrências totais — 69 apenas no dia da votação — com casos de propaganda irregular, violação de sigilo e desobediência a ordens da Justiça Eleitoral.
Curiosamente, a lei protege o eleitor. O Artigo 236 do Código Eleitoral proíbe qualquer prisão entre 5 de outubro e 48 horas após o encerramento da votação — exceto em três situações: prisão em flagrante, por sentença condenatória por crime inafiançável, ou por descumprimento de salvo-conduto. Isso quer dizer que, teoricamente, um preso provisório que fosse pego em ato de corrupção eleitoral não poderia ser preso no dia da eleição — mesmo que fosse flagrado. Mas a prática foi diferente. A polícia agiu com base em mandados anteriores, e 515 prisões ocorreram no dia 6 de outubro. Entre os presos, 23 eram candidatos. Isso mostra que, apesar da proteção legal, a Justiça Eleitoral e as forças de segurança não hesitaram em agir contra quem violou a lei antes ou depois do dia da votação.
Além das prisões, 816 eleitores, 166 candidatos e 14 colaboradores da Justiça Eleitoral foram conduzidos a delegacias para prestar esclarecimentos — mas não foram presos. Essa distinção é crucial. Condução é um procedimento para depoimento, não detenção. A maioria dessas pessoas foi levada por suspeita de boca de urna ou propaganda irregular. Já os 515 presos foram detidos por flagrante ou mandado de prisão já em vigor. O fato de que 22 candidatos foram presos no dia da eleição — e outros 144 foram conduzidos — revela uma realidade incômoda: a política brasileira ainda é, em muitos lugares, um negócio de poder e dinheiro, não de ideias.
Garantir o voto aos presos provisórios não é um gesto de caridade — é uma questão de justiça constitucional. Eles ainda não foram julgados. A presunção de inocência é um alicerce da democracia. Mas o fato de que apenas 6 mil de 209 mil puderam votar mostra que a lei, por mais justa que seja, não chega a todos. E isso é um fracasso da administração pública, não da legislação.
Por outro lado, os números de crimes eleitorais mostram que o sistema de fiscalização está funcionando — mas mal. A boca de urna, que é o crime mais comum, ocorre porque há demanda: eleitores vulneráveis são comprados, e candidatos desesperados pagam. A apreensão de R$ 22,7 milhões é um recorde, mas também é um alerta: o dinheiro sujo da política está vivo, e está bem organizado.
A Justiça Eleitoral já anunciou que vai ampliar o programa de urnas em presídios em 2026. Mas isso exige investimento — e vontade política. O TSE precisa de parcerias com estados e municípios para treinar agentes, garantir transporte e sensibilizar presos. Sem isso, o direito ao voto será apenas teórico.
Além disso, a Operação Eleições 2024, que mobilizou a Polícia Federal e a Força Nacional, deve virar referência. Mas não basta agir no dia da votação. É preciso combater a corrupção eleitoral antes, com educação cívica, denúncias facilitadas e punição rápida. O eleitor que vende o voto por R$ 50 é vítima de um sistema que o abandonou. E o candidato que paga por isso é parte do problema.
A maioria dos presídios brasileiros não tem estrutura para instalar urnas, nem logística para transportar mesários. Muitos presos não sabem que têm direito a votar, e em regiões remotas, como o Norte e o Nordeste, o acesso à Justiça Eleitoral é quase inexistente. Apenas 120 presídios em todo o país tinham seções eleitorais em 2024 — e muitas delas funcionaram com apenas uma ou duas urnas.
Boca de urna liderou com 1.057 casos apenas no dia da votação, seguida por compra de votos (423) e propaganda eleitoral irregular (309). A maioria desses crimes ocorreu em áreas de baixa renda, onde a vulnerabilidade social facilita a manipulação. A apreensão de R$ 520 mil em dinheiro vivo e 47 veículos mostra que a operação era bem estruturada — e cara.
Sim, se a prisão não for por crime eleitoral ou se a sentença ainda não for transitada em julgado. A Justiça Eleitoral pode cassar o mandato apenas se houver condenação definitiva por crime eleitoral. Dos 23 candidatos presos, 15 foram liberados em menos de 24 horas — mas todos enfrentam processos que podem levar à inelegibilidade futura.
Salvo-conduto é uma medida judicial que garante a segurança de alguém que sofreu ameaça por exercer seu direito de votar. A lei proíbe a prisão de quem tem salvo-conduto, mesmo em flagrante, para evitar intimidação. Em 2024, 12 salvo-condutos foram emitidos, mas muitos eleitores não os conhecem — e isso os deixa vulneráveis a pressões.
Sim. É o maior valor apreendido em operações eleitorais desde 2018. Em 2020, o total foi de R$ 14,2 milhões. O aumento reflete tanto o crescimento da corrupção quanto a eficácia da fiscalização. Mas também revela que o dinheiro da política continua sendo usado como moeda de troca — e que muitos eleitores ainda veem o voto como um bem comercializável.
Precisamos de leis que obriguem os estados a financiar seções eleitorais em presídios, treinamento de agentes penitenciários e campanhas de conscientização dentro das cadeias. Também é urgente digitalizar o processo de inscrição de votos para presos — hoje, eles precisam ir a uma junta eleitoral fora da prisão, o que é impossível para a maioria. Sem essas mudanças, o direito ao voto será apenas um artigo da Constituição — e não uma realidade.